Há alguns séculos que nossa sociedade ensina com estusiasmo o valor e
a importância social do trabalho. Desde o sujo chão de fábrica da
revolução industrial até o moderno executivo do mundo dos negócios,
geração após geração cultivou a noção do trabalho como algo central para
a existência humana e para o próprio sentido da vida. Por certo que
isso foi de grande valia para a fantástica geração de riqueza e
conhecimento que vemos hoje no mundo. Mas, com toda a mudança
experimentada pela humanidade, produzida com todo esse trabalho, esse
conceito permanece o mesmo? Qual é hoje o significado de Trabalho - e
qual sua real importância para a sociedade?
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Seu Madruga já dizia: o ruim é ter que trabalhar. |
Não vou discorrer novamente sobre a tecnologia moderna e tudo o que
ela pode nos proporcionar. Sou repetitivo mas não tanto. Mas fique claro
o que acredito sobre a tecnologia: possuímos hoje
todas as condições
físicas e técnicas de automatizar quase tudo, com certeza os processos
industriais e logísticos e provavelmente quase todos os procedimentos
administrativos e burocráticos dos serviços públicos. Aliás, temos
condições até de automatizar o próprio processo de automação - pode ser
uma frase mal construída, mas é verdade. Sistemas que gerenciam
sistemas, robôs que fabricam robôs, tudo isso já existe, e funciona.
A automação é uma questão central para o desenvolvimento econômico e
social. Os ganhos de eficiência e qualidade tão necessários a uma
sociedade sofisticada passam necessariamente pela redução da intervenção
humana nos processos administrativos e produtivos. Sim, o ser humano é
falho, limitado, sujeito a cansaço, frustrações, emoções, tudo isso nos
torna mais interessantes e combater essas características nos tornaria
menos humanos. Mas preferimos não ter falhas e defeitos em nossos
produtos e serviços, certo? A automação pode resolver esse problema - se
não totalmente hoje, é só questão de tempo.
Claro que alguns serviços importantes, como aqueles relacionados à
saúde ou assistência, ainda precisarão da ação humana, mas mesmo nesses
casos a tecnologia disponível reduz sensivelmente a necessidade de mão
de obra - e melhora sensivelmente o resultado final. Se hoje não temos
uma maior automação em nossos serviços, é porque combatemos o avanço da
tecnologia sobre nossos empregos. Para que? Para não ficarmos
desempregados. Mas para que precisamos estar empregados então?
Nossa sociedade se constituiu a partir do valor central do trabalho,
e pensamos e organizamos nossas vidas em torno de nossos trabalhos, a
ponto de não ser considerado um sujeito completo aquele que não trabalha
- no conceito mais tradicional do termo. Mas a realidade em que esse
valor se criou já não existe mais, na verdade praticamente se inverteu: a
mão de obra humana não apenas é incapaz de trazer grande contribuição
mas também prejudica o avanço tecnológico disponível. Considerada a
necessidade de abrir espaço para a automação, para dar maior qualidade a
produtos e serviços, pode-se quase dizer que abster-se de trabalhar já é
em si uma contribuição à sociedade.
Sendo o trabalho humano desnecessário na prática, não faz sentido
mantê-lo artificialmente apenas para dar sentido à existência - afinal,
não há um sentido para ser dado. Claro que há muitos outros conceitos de
trabalho, que podem ser usados e são muito mais significativos para o
mundo atual do que o conceito tradicional. Um voluntário que ajuda
doentes ou crianças carentes, um ativista ambiental ou simplesmente o
cidadão comum que se mobiliza por causas coletivas fazem muito mais pelo
mundo do que um trabalhador assalariado típico. A grande diferença está
na motivação - e na necessidade.
Mas nem é o caso de questionar quantos se dedicariam a alguma
causa ou finalidade que fizesse jus a sua existência. Apesar de que
suspeita-se de que sim, muitas e muitas pessoas se dedicariam às mais
nobres necessidades humanas por simples vocação pessoal. Voluntariado,
como o nome sugere, deve ser algo expontâneo de cada um, a ser feito
como e quando se aprouver, e também não teria sentido de outra forma.
Então também não é isso que substitui a razão da existência.
A razão da existência seria provavelmente a simples existência em
si, de preferência em harmonia e coexistência com seu meio e seus
semelhantes, cada um cuidando de seu habitat e de sua comunidade, mas
também de si mesmo e do seu próprio espírito. Tendo a automação para
fazer por nós tudo aquilo que não nos agrada fazer expontaneamente,
teríamos tempo de sobra para todo tipo de ação voluntária ou social, mas
também para nos dedicar a tudo aquilo que nos agrada e dá graça à
existência. Teríamos uma sociedade de músicos, artistas, escritores,
boêmios, esportistas, pessoas criativas e felizes produzindo coisas
bonitas e divertindo-se uns com os outros. Seria muito
espírito de porco
preferir o trabalho a isso, mesmo sabendo esse trabalho não ser lá
muito necessário.
Ainda hoje, vemos certo preconceito em relação a pessoas que não têm um
emprego ou empreendimento com fins econômicos. Há termos pejorativos
para quem vive com pouco e trabalha pouco, e pouca admiração por aqueles
que se dedicam a causas altruístas. Mas o pior ainda é reservado para
aqueles que dedicam-se a curtir a vida, viver bem e fazer o que gostam:
vagabundos.
Não é inveja, é o valor ultrapassado do trabalho como finalidade da
vida, tão enraizado que está. Pois então para que trabalhamos esses
últimos séculos senão para gerar as condições sociais e econômicas que
permitem nos dedicarmos aos prazeres da vida e celebrarmos a existência
humana? Essas condições estão sendo rapidamente alcançadas, então
podemos começar também a mudar nossos valores.
O espírito humano realmente livre - livre de valores ultrapassados e
convenções sociais - é o mais criativo de todos, capaz de criar
maravilhas e genialidades. Em uma sociedade de espíritos livres, podemos
esperar grande riqueza cultural, artística e científica, mas também uma
grande melhora no convívio social, na saúde mental e na realização
pessoal. E, provavelmente, um aumento significativo no trabalho
voluntário e no envolvimento em causas comuns - o que realmente muda o
mundo para melhor hoje -, mas isso ainda não será o objetivo da vida, e sim uma consequência de uma sociedade mais saudável.
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Se houvesse comida e abrigo para todos, certamente que a formiga se uniria à cigarra, para juntas celebrarem a alegria de viver |
Até aqui, esqueci propositalmente a questão financeira. Claro, ainda
que se concorde com tudo acima, resta a questão do sustento, da
sobrevivência em uma sociedade voltada para o capital. Pois bem, essa é a
questão que fica: a grande maioria trabalha hoje uma vida toda em
empregos desagradáveis, de pouca contribuição social e ainda menos
satisfação pessoal, não por valor ou virtude, mas por imposição de
mercado, por uma convenção do sistema vigente. Entender isso já é um
ótimo primeiro passo para começar a buscar a sociedade que gostaríamos
de ter, e não a que achamos que precisa ser.