quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Cidades Contemporâneas - O Nó da Mobilidade

Considerando que problemas mais sérios - educação, saúde, pobreza - não são, em essência, urbanos - mas sociais -, não hesito em dizer que o maior problema urbano atual é a mobilidade. Mesmo para cidades desenvolvidas e bem planejadas, garantir uma boa mobilidade a residentes e visitantes é um desafio. Para cidades menos desenvolvidas, a situação fica próxima do caos.

A fantástica engenharia de tráfego moderna

Enquanto algumas cidades pelo mundo têm desenvolvido projetos inspiradores, a realidade brasileira me parece desesperadora. Algumas cidades estão estagnadas, outras estão patinando há anos em projetos que não avançam, outras ainda estão andando para trás, investindo naquelas soluções que na verdade se transformam em problemas - como o resto do mundo já descobriu. Não é um privilégio das grandes cidades, com seu caos típico de áreas metropolitanas: cidades pequenas e médias só têm seus problemas reduzidos à medida em que as distâncias são menores, mas as soluções de transporte costumam ser terrivelmente pobres.

Parece que o transporte é tratado como uma questão meio particular, cada um que se vire como puder. Independente do que digam, é o que os governantes municipais demonstram em suas ações e prioridades. Mas não há dúvida de que essa é uma questão das mais estratégicas na vida de uma cidade. As condições de transporte e mobilidade podem definir a degradação ou recuperação de um bairro, a relação da comunidade com os espaços públicos, o acesso a oportunidades de trabalho, as alternativas de moradia e, se o interesse do poder público for apenas esse, o desempenho econômico local, tanto da construção civil como do comércio e serviços.

Mobilidade também é uma necessidade social básica. É a acessibilidade para todos - inclusive para aqueles com necessidades especiais, mas também para os demais. Pode recuperar comunidades marginalizadas por exemplo. Além do mais, a possibilidade de as pessoas circularem pela cidade, acessando serviços e espaços de lazer e interagindo entre si, multiplica o capital social, principal riqueza atual.

Pois bem, se há a necessidade social e potencial interesse econômico, resta o problema da capacidade do poder público, sempre lento e muito pouco criativo. Melhor não esperar por ele, até agora não deu certo. A própria sociedade precisa construir novas soluções para, depois, impôr ao poder público suas prioridades. Agora, nossa sociedade tem uma idéia clara do que precisa - ou, ao menos, em que direção ir? Creio que não.
Mobilidade baseada em carros: talvez com mais algumas ruas, viadutos...

O advento do automóvel gerou um modelo de urbanização e transporte que caracteriza bem o século 20. Do ponto de vista da mobilidade, o século 20 pode ser visto como a história da ascensão e apogeu do automóvel. Não duvido que tenha revolucionado o mundo e a vida das pessoas. Fantástico. Mas já estamos em outro século. E agora? Pois, se o automóvel ditou todo o processo de urbanização das grandes cidades no último século, não chega a ser injusto atribuir-lhe culpa pelos problemas atuais desse modelo urbano.

Para começo de conversa, o carro é excludente e limitante. Nem todos podem ter um. Nem todos querem, ou gostam. E mesmo que todos devessem, sim, ter e usar um carro, não haveria espaço para todo mundo. A abertura de avenidas, viadutos, túneis, a ponto de permitir tamanha demanda de espaço, degrada o espaço urbano e dificulta a circulação, desmotivando as pessoas a saírem de casa e interagirem em espaços públicos - o que compromete o próprio funcionamento da cidade e a geração do capital social.

Pedestres são criaturinhas que insistem em atrapalhar o trânsito - alguns pagam com a vida.

Ainda não entendemos a inviabilidade desse modelo. Continuamos reclamando do excesso de semáforos, da falta de viadutos, dos tais pedestres que insistem em sair à rua e atrapalhar o trânsito - e ao mesmo tempo compramos carros maiores, mais rápidos, mais agressivos. Exigimos mais espaço para estacionar, combustível mais barato, IPI reduzido - mas reclamamos da degradação do espaço público, da poluição e do tamanho dos congestionamentos. Seguimos amando o carro e odiando os efeitos de seu uso.

Carro é uma invenção genial, mas não foi feito para ser usado o tempo todo por todos para tudo - e ponto. Então é essencial que haja alternativas. Pela demanda de espaço típica do automóvel, é essencial desincentivá-lo para permitir espaço às alternativas. Para não forçar uma multiplicação do espaço consumido com veículos, tira-se a prioridade do veículo individual (ou quase individual) para dá-la aos outros. Essa é uma grande mudança de cultura, já que o automóvel está enraizado no estilo de vida.

Carros são um pouco egoístas com relação ao espaço - como fazer para caber todos?

Entender que é necessário mudar um modelo do século passado (e rever o papel do principal elemento desse modelo: o automóvel particular) para criar novas soluções é o primeiro passo. O contrário seria insistir nas mesmas estratégias, produzindo os mesmos resultados e problemas. Aí exige-se de cada um desapegar-se de sua idéia de conforto imediato (que muitas vezes fica só na idéia) para abraçar a possibilidade de soluções novas, melhores e para todos. Já há soluções em construção e dá para apostar em sua viabilidade. Mas vou deixar para continuar o assunto na próxima postagem.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Respeito à Individualidade - Essencial, Natural e Não Faz Mal.

Sejamos diretos: você é um reaça. Sim, reacionário, sendo bem francos. Reaça mesmo. Tem sérias dificuldades em respeitar a opinião e a liberdade alheias, e acredita sinceramente que não pode haver visão de mundo melhor do que a sua. Toma por missão impor seu sistema de crenças e valores, pois no fundo faz questão que todos sigam seu sistema para que não possa surgir um melhor - o que obrigaria você a reconhecer que suas crenças e valores não eram assim tão perfeitos.

Impôr sua vontade aos outros parece divertido, certo? Só para você...

Mas não se envergonhe tanto - um pouco sim, mas não tanto. Parece que você é maioria hoje em dia. Não lhe exime de culpa pelo que você e os seus fazem com o mundo, mas ao menos divide a culpa entre todos. É provável que sempre tenham sido maioria, mas muitos permaneciam meio adormecidos, sem muita vontade de se envolver. Foi quando seres de espírito livre e entusiastas do livre pensamento começaram a se articular pelo mundo que essa maioria adormecida acordou assustada. Fazendo jus a seu rótulo, levantam-se em reação a um sopro de mudança que recém começava a ganhar força.

Quanto mais se pensa a respeito, mais curioso parece esse comportamento de querer interferir na vida dos outros, ditar regras, proibir, obrigar. Há um aspecto religioso inegável aí, senão direto, ao menos uma herança recente do pensamento típico de nove entre dez religiões do mundo: a necessidade de promover seu estilo de vida sobre os outros, como uma obrigação moral de fazer o mundo funcionar como você acha que deve. Afinal, ao íntegro não se permite conviver com o ímpio.

Mas a religiosidade está em queda, a postura reaça não. Há outros ingredientes. Intolerância talvez: "O que é diferente não pode ser bom e, além disso, me ameaça". Ignorância com certeza: "não sei o que é isso e não quero saber, não entendo e fico com raiva de quem entende". E possivelmente algo de competição: "a visão do outro não pode ser melhor que a minha, e seu estilo de vida não pode ser melhor que o meu, então nem tente, espertinho". Não interessa se o outro não está competindo com ninguém. Para você reaça, o que importa é o seu ponto de vista. Mas não se ofenda se eu insinuo que você é ignorante ou intolerante, encare isso de frente e prove que estou errado.

Claro que você tem direito a seu ponto de vista tanto quanto qualquer outro, e claro que você pode ter razão em muitas coisas enquanto outros não têm. O problema é essa sua idéia de que o mundo é dual, e esse raciocínio linear de que o que não é bom só pode ser ruim, o que não está certo é errado. A realidade é um pouco mais complexa do que isso. Não há uma resposta certa em um problema que afete várias pessoas, já que as pessoas são diferentes e precisam de soluções diferentes, e uma solução coletiva, para ser válida, deve sofrer um processo de composição e, sempre que possível, consenso. Ou seja, ninguém está propriamente certo ou errado.

Livres de preconceitos, os indivíduos tendem a alcançar consenso em todos os seus problemas comuns, sem prejuízo de sua individualidade.


Não é tão difícil quanto você pensa. Na grande maioria dos problemas coletivos, as soluções convergem naturalmente para um consenso, uma solução composta que provavelmente será melhor que as idéias iniciais que a geraram. Problemas coletivos são essencialmente práticos e as soluções necessárias são essencialmente técnicas. Não havendo preconceitos e reservas morais, resta equacionar as diferentes necessidades e preferências envolvidas para que todas sejam atendidas na mesma medida. E se todos se dedicassem em tempo e energia para essas questões práticas, muitas delas seriam resolvidas em pouco tempo.

O caso é que você e os seus não conseguem se ater a questões práticas. Dispersam sua energia - e a dos outros - envolvendo-se em tudo aquilo que não lhes diz respeito: o que os outros fazem ou deixam de fazer, como relacionam-se entre si, o que fazem com seu corpo. Não, você não é obrigado a concordar com nada que os outros façam, mas talvez eles também não sejam obrigados a pedir sua concordância. Invadiram seu espaço de alguma maneira? Isso é um problema. Mas se ninguém invadiu seu espaço e mesmo assim você mete o bedelho, bem, então você é que está invadindo. Tão errado quanto, ou talvez pior. Nunca julgue ou condene por antecipação. As pessoas devem responder por seus atos, não por suas preferências. Não conclua que um determinado comportamento ou estilo de vida vai levar a algum tipo de falta ou transgressão, essa relação pode fazer sentido para você, mas não para os outros. Lembrando: as pessoas são diferentes.

Sabe o mais engraçado? No fundo você gostaria de se relacionar melhor com as pessoas, com sua comunidade, com o mundo, e poderia fazer isso facilmente, respeitando cada indivíduo em seu devido espaço e buscando sempre uma convivência harmônica e construtiva, tanto em idéias como em ações. Mas prefere oferecer aos outros seu preconceito e sua intolerância, e aí estraga tudo. Bem, na verdade não é engraçado.

Não sinta-se ofendido ou provocado a uma briga. Sinta-se intimado a uma reflexão saudável sobre a forma como se relaciona com o mundo e com as diferenças entre indivíduos. Sua idéia de mundo perfeito é absurda, pois não adianta ele ser bom só para você. Claro, deve servir também para você, o que significa que os outros devem respeitar seu espaço e suas preferências. Mas não espere que lhe dêem o exemplo, faça isso você também.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

O Importante é Competir - Ou Não

Certo, em tempos de olimpíada, um artigo oportunista, mas também oportuno - e vice-versa. E há que se considerar o fenômeno de que tais questões só são lembradas e discutidas no Brasil a cada quatro anos. Então, antes que elas simplesmente deixem de existir pelos próximos tempos, vamos a elas...
Medalha olímpica: aparentemente, símbolo e objetivo do bom investimento de um país em esporte.

Não, eu não cobro do Estado mais verbas para o esporte. E não, eu não me emociono com a história triste de nove em cada dez atletas brasileiros, que sofrem todas as agruras que a vida pode oferecer para, embuídos de um patriotismo a Galvão Bueno, levar o nome de nosso país à glória esportiva. Certo, entendo os valores do esporte e sua importância cultural para uma sociedade. Entendo o lado positivo de um evento como as Olimpíadas. E até entendo esse espírito de competição que se desenvolveu entre os países - só não concordo nem apóio.

Não sei desde quando existe a idéia de um quadro de medalhas, ranqueando os países entre si por número de medalhas, mas me parece algo inútil, infeliz e, quando se pensa a respeito, absurdo. Medalhas de ouro, prata ou bronze são meras convenções para classificar os primeiros colocados em uma competição, o que não significa que medalhas conquistadas no futebol, atletismo, levantamento de peso, tiro ao alvo e esgrima sejam de alguma forma equivalentes e passíveis de uma contabilidade. É como somar maçãs com bananas. Aliás, na grande maioria das modalidades - e principalmente naquelas tradicionalmente "olímpicas" - prevalece o talento e a preparação do indivíduo, e pouco importa onde esse indivíduo nasceu. Contabilizar uma vitória individual como simplesmente mais uma medalha no quadro de um país desmerece a conquista do atleta, e que pertence a ele antes de mais nada.
Competição entre países: alguns no amor e na vontade, outros superequipados e supercondicionados.
A nacionalização da competição esportiva pode ser entendida no interesse dos governos e regimes de fazer autopropaganda e de se promoverem de forma barata. Afinal, ninguém há de crer que vitórias esportivas efetivamente melhorem a vida de uma sociedade ou resolvam problemas estruturais de um país. Mas a estratégia funciona. As pessoas ficam felizes, se sentem mais patrióticas, realizadas. Mesmo em caso de derrota, ainda resta como recurso trabalhar o sentimento de esperança no futuro próximo, de preferência com mais trabalho e empenho para que o país atinja suas metas: títulos e medalhas.

Daí se explica esse raciocínio do investimento público, não na prática esportiva ou na sua promoção, mas na competição em si e em seus resultados - e na sua promoção. Não vejo nenhuma outra forma justificável de investimento público em esporte que não seja o acesso direto das pessoas - principalmente jovens e crianças e mais principalmente aqueles mais excluídos - à infraestrutura necessária para a prática esportiva. Produzir medalhistas olímpicos pode até promover a prática do esporte entre a sociedade, mas se não houver efetivo acesso aos equipamentos necessários, a promoção perde o sentido. Contudo, quando se fala em investimento público em esporte, se pensa justamente no contrário, no investimento direto em produção de títulos e resultados, independente do efeito prático que isso traga para a vida da sociedade - afinal, uma medalha em tiro de carabina é igual a uma medalha em natação ou atletismo, o que importa para o país é o número.

Analisando os resultados numéricos, acho curioso imaginar como a vida das pessoas no Cazaquistão, por exemplo, pode ter melhorado depois que o país resolveu investir pesado em uma equipe de levantamento de peso - ou sei lá que modalidade - e ganhou uma boa meia dúzia de medalhas. E se críassemos, no Brasil, o Jiu-jitsu olímpico, com umas dez categorias por peso, masculino e feminino? Vinte medalhas de ouro. O que mais mudaria no país além do patriotismo inflado? Pois bem, e se investíssemos mais nas modalidades já existentes, cujos membros tanto reclamam de falta de apoio, com patrocínios, bolsas e o que mais quiserem, o que mudaria no país? Apenas a idéia de que sim, o governo investe e cuida do esporte, e está fazendo sua parte.
Os bons resultados no esporte são importantes para muita gente em nossa sociedade.
E esse uso institucional do esporte vai exatamente contra a parte boa do esporte. O esporte de competição nem sequer é saudável - primeiro valor do esporte -, já que em nome do resultado se sacrificam até as articulações do corpo. Aliás, boa parte dos grandes patrocinadores oferece produtos que podem ser tudo, menos saudáveis. E boa parte das grandes potências olímpicas tem regimes que dificilmente praticam uma boa inclusão ou justiça social. Mas são altamente favorecidos pela promoção dos resultados.

Pior ainda é não poder falar mal desse assunto - tipo o que estou fazendo agora, mas eu sou um antipático -, já que pega muito mal ser contra eventos esportivos, ser contra nossos atletas, tão esforçados e carentes de apoio. Mais ainda, ser contra nosso país, representado basicamente por chuteiras, luvas de boxe e afins. Mas se toda essa institucionalização do esporte vai exatamente contra os valores do próprio esporte, ser contra isso é ser a favor do esporte, certo? E em tempos que se critica tanto os gastos públicos em estádios e arenas para a copa, por que defender o gasto público em medalhistas e resultados? Para mim, dá no mesmo.

Aliás, quando um atleta "sem apoio" vence representantes de potências esportivas, injetados de dinheiro e cercados de megaestruturas de preparação e condicionamento, antes de pensar que esse atleta vencedor mereceria apoio (seja de Estado, seja de patrocinadores), penso é que os outros que não deveriam ter. Afinal, esporte pelo esporte, não pelo resultado.