quarta-feira, 30 de maio de 2012

Engenharia de Tráfego Moderna: um case de caos urbano

Moro em Porto Alegre, uma cidadezinha no remoto sul do Brasil. Apesar de pequenina e provinciana, Porto Alegre tem a infelicidade de suportar sobre sua superfície 1,5 milhão de criaturinhas humanas, sendo que toda a área metropolitana apresenta aproximadamente o dobro desse singelo número. Aproximadamente mesmo, quase se esbarrando um no outro. É bastante gente se mexendo e fazendo barulho para todo lado. Uma verdadeira maravilha do Brasil moderno.



Em minha cidade, não reclamamos muito de falta de metrô, tramway, Brt... Afinal, somos brasileiros, e isso é tudo coisa de europeu fresco. Para nós, transporte público é coisa de pobre, é o bumba, chacoalhando o povo por duas horas entre o centro e o bairro. Agora, experimenta botar semáforo na rua para ver se não viramos feras dentro de nossos carros. E nem adianta, pois nossa cidadezinha não paga imposto para botar semáforo - aqui chamamos de sinaleira, que é mais pitoresco. Tem sinaleira embaixo de viaduto, em volta de rotatória, a cada dez metros em vias expressas, enfim, nossa criatividade permite colocarmos sinaleira em quase qualquer lugar. E nosso gênio ruim faz com que amaldiçoemos as mães de todos aqueles que as colocaram.

Pois bem. Atualmente, uma mega ação de intervenção urbana da prefeitura espalha semáforos em torno das principais rotatórias da cidade. Antes de mais nada, registre-se minha opinião técnica e bem balizada sobre o assunto: rotatórias com semáforos em volta parecem um forte sinal de que algo vai meio mal na engenharia de tráfego. Tipo, tecnicamente falando, uma verdadeira bicheira de engenharia de tráfego. Mas, sabe o pior? Era necessário.

Nessa pacata cidade, vale a lei do mais forte. Aqui, entenda-se que a massa de um carro multiplicada por sua velocidade lhe confere energia cinética. Quem detém a maior energia cinética tem a preferência em uma rotatória. E pode ser bem difícil decidir isso no calor do momento, cada um correndo para chegar mais rápido ao próximo congestionamento. Nossas rotatórias são um desafio à boa convivência de nossos calmos e bem equilibrados motoristas. E pior ainda para os pedestres e ciclistas - sim, pois, pasmem os habitantes de outras realidades, essas calamidades do trânsito costumam ficar em áreas de grande circulação de pedestres. Atravessar uma rotatória é arriscar a vida, já que pedestres e ciclistas têm uma energia cinética que nem merece respeito.

Foi necessário, e bem feito. Bem feito para os muitos motoristas que abusam de sua energia cinética nesses locais, e não demonstram quase nenhum respeito pela pele dos mais indefesos. Aproveitem a parada em frente aos semáforos para refletir sobre a vida.

Essa singela parábola do motorista portoalegrense, que desrespeita o pedestre e depois esmurra o volante quando tem que parar em um semáforo, representa bem a problemática de muitas das questões urbanas modernas: ação e reação, yin e yang, o que vai volta, e o que você faz é o que você recebe. Jogue lixo nos bueiros e sofra com os alagamentos; desrespeite as regras de convivência no trânsito e sofra com o trânsito precário; apóie o fechamento de bares e atrações de lazer em nome de seu sossego, depois sofra com a falta de opções de lazer na cidade.

Uma cidade é mesmo recheada de criaturinhas humanas dos mais diversos naipes e gênios - quase todos ruins. Aliás, não o fosse, não mereceria o nome de cidade. No máximo, vilarejo. Na verdade, essa diversidade é o que gera riqueza cultural e desenvolvimento humano a uma cidade - diferentes idéias, visões de mundo, experiências de vida, tudo convivendo junto em um único espaço e tal... Mas se houver a tal convivência. Na sociedade de consumo, aprendemos a valorizar nosso espaço, nossa casa, nosso carro, nosso ar, nosso silêncio... Mas em uma cidade grande os espaços não são tão individualizados assim. Nem tem como ser. Milhões de criaturinhas inquietas e barulhentas? Mude-se para o campo ou para a praia - uma das bem pequenas.

E pela própria lei de ação e reação, quanto mais se tenta fechar o espaço de uma tribo urbana, geralmente daquelas mais chatas e barulhentas, mais ela reage incomodando e fazendo barulho. Quanto mais os carros tomam espaço da cidade, mais os demais grupos tendem a invadir esse espaço. E quanto maior o confronto entre diferentes grupos de interesses, maior a regulação e restrição para todos.

Uma cidade grande deveria ser capaz de acomodar a todos os grupos se preservado o interesse comum. Uma boa rede de transporte público atendendo à grande maioria libera espaço suficiente para todos os demais, sejam motoristas, pedestres ou ciclistas. Uma boa quantidade de espaços de convívio e lazer permite opções a todas as tribos, sem disputa por espaço ou invasão das áreas de sossego. E assim vai, essa é a idéia. Mas tudo isso demanda que se pense no bem comum antes do particular. Yin e yang, o que vai volta. Aquilo que você faz é o que você recebe.

A engenharia de tráfego moderna é um ótimo exemplo do quanto é inviável tratar nossa falta de capacidade de convivência na marra. Enquanto cada um se preocupa com seu próprio espaço, tape-se a cidade com semáforos, viadutos, quebra-molas, barreiras, e assim fica ruim para todo mundo e não fica bom para ninguém. Não deixa de ser democrático. Claro que seria melhor enfrentar nosso gênio ruim e desenvolver o respeito mútuo e a prática da coexistência. Mas somos mesmo criaturinhas muito barulhentas.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Uma Economia Baseada em Recursos: Um Estudo da Vida Real de Culturas Isoladas (tradução PT-BR)

Traduzido por mim, com a maior fidelidade possível, a partir do original em inglês "A resource-based economy: A real life study of isolated cultures", publicado em 17 de março de 2012 por Mikael Wafin (se você, assim como eu, não confia em tradutores como eu, chega lá!).


"Eu estava assistindo a um documentário da BBC sobre o Pacífico Sul, no qual são mostradas diferentes ilhas isoladas nesse oceano e como elas tem sobrevivido com pouco ou nenhum contato com o mundo moderno. O programa apresentou a fascinante Ilha da Páscoa com suas famosas estátuas de pedra chamadas Moai."

"A Ilha da Páscoa era florescente em seus primeiros anos de colonização humana com largas florestas e grandes colônias de aves. Mas com o excessivo corte de árvores e caça de aves, muito da floresta frondosa e todos os pássaros nativos vieram à extinção. O corte excessivo da floresta foi forçado principalmente pela competição entre as tribos nativas quanto a qual delas iria criar a maior estátua de pedra, já que eles precisavam das árvores para transportar as estátuas pela ilha. Essa ignorância do conceito de conservar os recursos existentes resultou em um grave declínio da população e teve um impacto extremo na sobrevivência dos habitantes nativos e das gerações futuras. Hoje a Ilha da Páscoa ainda encontra-se despida das antigas e poderosas florestas."

"O documentário seguiu em frente para examinar outra ilha isolada do Pacífico Sul chamada Anuta. Anuta tem praticamente as mesmas condições da Ilha da Páscoa, isolada e vulnerável com seus recursos limitados. A diferença entre Anuta e Ilha da Páscoa é principalmente a atitude cultural. Enquanto as antigas culturas da Ilha da Páscoa tinham uma atitude competitiva uma com a outra e pouco respeito pelos recursos existentes, a população de Anuta é o oposto. Consideração pelos outros é a espinha dorsal do povo anutano. Eles têm uma filosofia chamada 'Aropa', que é um conceito de doar e compartilhar com os outros e é uma linha guia para como tratar um ao outro. Um exemplo dessa filosofia é que toda família na ilha recebe uma unidade de terra para cultivar comida para alimentar-se e também àqueles a sua volta. Eles estão bem cientes da escassez de recursos e da importância de cuidar um do outro. Eles sabem o que têm que fazer a fim de sobreviver e prosperar."

"É bastante óbvio qual atitude cultural é a mais sustentável. Os fatos e os exemplos da vida real estão aí. Competição e crescimento infinito dentro de um sistema finito não eram, não são e jamais serão sustentáveis. Se ao menos pudéssemos aprender com as experiências dessas ilhas isoladas, poderíamos mudar a inevitável destruição de nossa ecologia, que vem sendo preparada para nós pelo corrente sistema de mercado monetário."


Agora, alguns comentários...

Claro que o exemplo de uma pequena ilha isolada no oceano não pode ser tão diretamente aplicado ao mundo todo. A evidência gritante da limitação de recursos favorece o desenvolvimento de uma consciência adequada a essa realidade, e o estilo de vida que se desenvolve nesse cenário é obviamente muito mais simples. Mas o mundo como um todo também é limitado em seus recursos, e em algum momento eles atingem a exaustão. Recursos mais abundantes e mais diversificados até propiciam um estilo de vida mais sofisticado e complexo, mas se não houver um equilíbrio o esgotamento é questão de tempo. Ou seja, a diferença entre uma ilha e o mundo não é de princípio, mas de escala.

Além do mais, destaca-se a diferença entre as duas ilhas. Se os anutanos viram o óbvio da sua realidade, por que os habitantes da Ilha da Páscoa, capazes de fazer maravilhas, não viram essa mesma realidade antes que fosse tarde demais? E de que serviram suas grandes realizações depois que seu ambiente já encontrava-se devastado? Não estaria a humanidade como um todo nesse caminho? Em outra escala, claro.

O autor mostra-se bastante conciso em sua narrativa (afinal, em tempos de twitter e facebook, ninguém lê nada com muito mais de meia página), mas observa-se nas entrelinhas que compartilhamento e colaboração foram as formas encontradas de lidar com poucos recursos e evitar o desperdício. Cada família utiliza os recursos na dimensão de sua necessidade e compartilha com os demais na medida de sua possibilidade. Acumulação, tanto de produtos como dos meios de produção, seria inviável nessa sociedade, pois forçaria os menos favorecidos contra a conservação dos recursos naturais, comprometendo as gerações futuras.

Em tempo, não assisti ao documentário e não, nunca estive em Anuta ou Ilha da Páscoa. Mas mesmo que isso fosse uma fábula de ficção, ainda assim faria sentido, e é o que importa.

Fontes (conforme o original):

Feinberg, R (1988)
'Polynesian Seafaring and Navigation: Ocean Travel in Anutan Culture and Society.' Ohio: Kent State University Press.

A. Strathern, P. Steward, L.M. Carucci, L. Poyer, R. Feinberg, C. Macpherson (eds) (2002)
'Oceania: An Introduction to the Cultures and Identities of Pacific Islands.' NC Carolina Academic Press.

Feinberg, R (2004)
'Polynesian Life ways for the 21st Century. Prospect Heights,' IL: Waveland Press.

Paper discussing socio-political change on Anuta, Feinberg, R (1982)
(PDF document)
http://patriot.lib.byu.edu/PacificStudies/image/10910221792004_vol_5_no_...

http://en.wikipedia.org/wiki/Easter_Island

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O Estado de Ineficiência e A Cultura do "Faça Você Mesmo"

Este texto mais ou menos segue um outro anterior, Sociedade da Ineficiência, onde tentei esmiuçar o "problema". Agora, tento analisar mais as soluções.


A ineficiência observada no mundo atual é não apenas proposital como também necessária aos sistemas econômicos vigentes. Dos problemas e carências, reais ou induzidos, advêm as oportunidades de negócio e geração de renda - assim como, em consequência, a concentração de poder político e econômico. Ou seja, os grandes detentores de poder são também os mantenedores dos grandes problemas mundiais. Vide a grave crise financeira tão alardeada, em contraste com a riqueza desmedida dos senhores das finanças. Ou, ainda, a miséria das guerras, em contraste com a prosperidade da indústria armamentista e das grandes empreiteiras que atuam na "reconstrução" de países.

Essas forças e interesses convergem e se materializam no Estado Moderno, dominado e pautado por lobbies, financiamentos de campanha, corporativismos e classismos. Disperso em questões menores, embromador em questões maiores e omisso dos grandes problemas. Enfim, ineficiente por vocação e destino. Alguns ainda acreditam na força do voto para melhorar a representação política e a atuação do Estado. Abençoados sejam em sua esperança, mas minha opinião já registrei anteriormente aqui no blog.

Algum Estado há de ser necessário, presume-se. E o "Estado mínimo" é aquele que menos faz e mais deixa fazer - o problema é quem e o que. Entes privados ou auto-organizados tendem a ser mais eficientes que o Estado, mas na consecução de seus próprios objetivos. Se esses entes são os mesmos que, indiretamente, já governam hoje os Estados, os resultados que já são ruins para a sociedade tendem a ser piores. O Estado só será mais eficiente para a sociedade se for diretamente controlado por essa sociedade - em outras palavras, se a sociedade tomar as rédeas e tornar Estado o conjunto de suas decisões e ações diretas, sem intermediação.

A prática do "Faça Você Mesmo" (do it yourself, no original em inglês) ainda é recente, mas se alastra rapidamente e vem demonstrando o quanto é possível essa ação direta da sociedade. Munidos das modernas ferramentas de comunicação, grupos independentes se formam no exato instante em que surge um problema a ser tratado. Em pouco tempo, trocam idéias e elaboram uma solução, partindo em seguida para sua execução. Dependendo do tamanho do problema, o grupo que se forma pode ser bem maior, e consegue até mesmo reunir recursos materiais e expertises técnicas que se façam necessárias. Se esses grupos encaminhassem seu problema, já com a proposta de solução, para uma prefeitura ou qualquer outro órgão público, em quanto tempo teriam uma resposta? E quanto tempo mais para iniciar a execução? E para concluir o trabalho, se chegar a ser concluído? Agindo de forma direta, um grupo bem organizado faz acontecer de um dia pro outro. E grupos que se reúnem em torno de objetivos claros e interesses genuínos costumam ser muito bem organizados.

O primeiro passo para fazer isso acontecer é entender que não se deve esperar pelo Estado. Aliás, a melhor forma de pressionar o Estado a fazer é fazer por ele, apresentando concorrência. A regra é: se você mesmo pode fazer aquilo que necessita, então faça. Claro, uma discussão prévia com vizinhos e concidadãos é de bom tom, e esse seria o segundo passo. Esse é fácil. As redes sociais tornaram bastante natural o contato direto das pessoas em grandes grupos ao mesmo tempo. Se todas se interessarem de alguma forma por um tema, se envolverão. A maioria dos temas que envolvem necessidades de uma comunidade ou vizinhança tendem a ter consenso rápido. Por exemplo, se quero limpar uma praça, fechar buracos de uma rua ou recuperar um calçamento, difícil alguém ser contra, certo?

Por fim, estando todos corresponsabilizados pelo problema e entendidos quanto à solução de consenso, vem a execução. Como um problema comum a muitos tende a interessar muitos, se todos se envolverem e cada um fizer sua parte, não fica pesado para ninguém. Mesmo que necessite de recursos, como material ou equipamentos, um grupo grande com bons contatos (novamente as redes sociais tornam isso fácil) corre atrás e levanta o que precisa a custos acessíveis.

Em se disseminando essa prática, e as pessoas desenvolvendo as habilidades do trabalho colaborativo e da discussão em rede, podemos pensar em realizações cada vez maiores e mais complexas. Não há impedimento técnico, é uma questão de escala. Em um grupo com milhares de pessoas, quantos médicos, engenheiros e empresários haverá? Com acesso cada vez mais fácil aos mais diversos recursos e tecnologias, o que seria inviável a esse grupo? Minha teoria é de que, conforme a escala de adesão das pessoas, dá para fazer qualquer coisa que um órgão público faria (melhor e muito, muito mais rápido e barato), substituindo aos poucos o Estado tradicional por uma sociedade auto-organizada em rede. Seria o futuro da administração pública - nesse caso, pública de verdade.

O Estado, tal como é hoje, há de ser mais um obstáculo do que um facilitador do processo. Lógica da concorrência ao invés da colaboração. Estados são instituições, e como tal lutarão de forma egoísta por sua sobrevivência. Mas, por sua própria lógica legalista, utilizam as armas erradas: muitas vezes, tentam prender, reprimir ou processar os cidadãos que arregaçam as mangas como se fossem vândalos ou desordeiros. Tática suicida, pois grupos cada vez maiores se envolvem nessa rede de colaboração e proatividade. Lutar contra significa ir contra a própria sociedade - e o que é um Estado que vai contra sua sociedade?

quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Capital Colaborativo e A Economia do Terceiro Milênio

Para entender melhor as condições em que se torna possível a realidade abaixo descrita, recomendo dar um pulinho em A Terceira revolução industrial - mas depois volta aí!
Em uma sociedade em que o principal fator de produção é o conhecimento, a capacidade produtiva está dentro de cada indivíduo. Mas, pela lógica desse fator de produção, a geração de valor se dá apenas a partir da interação desses indivíduos. Ainda, diferentemente de qualquer outro fator já utilizado, o conhecimento não se consome com o uso, mas, pelo contrário, se multiplica a cada interação. Ou seja, o acesso ao principal fator de produção da atualidade não se dá pela concorrência, mas pela cooperação, e sua conservação não se dá pelo monopólio, mas pela disseminação. A economia que se estrutura sobre esse fator de produção, consequentemente, não é competitiva, mas colaborativa, e o que crianças de maternal entendem naturalmente ainda é um desafio para o raciocínio de boa parte do mundo.

As características inerentes ao fator conhecimento, da apropriação individual e da disseminação aberta e irrestrita - não é mais viável qualquer regulação efetiva sobre isso - alteram o foco dos processos produtivos, da grande organização para a rede informal de indivíduos, e alteram também, como consequência, a lógica que estabelece os objetivos desses processos. Enquanto organizações econômicas visam o lucro financeiro, e organizações outras visam acúmulo de capital político, e todas visam sua própria permanência no tempo, indivíduos têm as mais diversas motivações: ganho financeiro e capital político inclusive, mas também autodesenvolvimento, realização pessoal, espírito de comunidade, engajamento social e outros. Da mesma forma que cada indivíduo tem um diferente conjunto de conhecimentos, também tem diferentes necessidades e motivações.

A partir dessa constatação, se torna  interessante um ambiente de trocas constantes, em duas vias, conforme a máxima "de cada um, suas capacidades; para cada um, suas necessidades". Não chega a ser um escambo, pois a rede que se forma é plenamente conectada. Cada indivíduo conectado joga para dentro da rede sua contribuição (de cada um, suas capacidades) e retira de lá o que lhe interessa (para cada um, suas necessidades). Lembrando que nem lá nem cá ocorre qualquer subtração, mas multiplicação.

Quando o fator a ser considerado é o conhecimento, não há consumo, apenas produção, de modo que não há tendência de escassez, mas sim de abundância, o que torna sem efeito quaisquer práticas de reserva de mercado, concorrência ou monopólio. A formação de uma rede de acesso irrestrito baseada em colaboração é natural. Não havendo restrições, essa rede tende a crescer em nível global. Extrapolando, imaginemos todos os indivíduos do mundo conectados uns aos outros pelos recursos de telecomunicações, contribuindo com o que têm e aproveitando do que precisam. Organizações econômicas ou políticas perdem muito de sua função nesse cenário - senão toda. Os indivíduos tornam-se capazes de agruparem-se segundo cada um de seus interesses e necessidades, pelo tempo em que estes durarem, e em grupos maiores ou menores conforme a importância de cada assunto para o conjunto da sociedade.

Não é necessário forçar o indivíduo à colaboração (o que aliás nem faz sentido) ou mesmo ter muita fé na pré-disposição em colaborar. A própria interação já estabelece a colaboração, e à medida que o indivíduo busca suas necessidades na rede ele automaticamente colabora para o enriquecimento da rede. Lembremos que o fator aqui é o conhecimento, e até uma pergunta ou crítica contribui para seu crescimento, e o simples acesso, ainda que calado, contribui para lhe atribuir valor. De qualquer forma, o mais natural e esperado é que cada um, enquanto tenha liberdade irrestrita para atuar onde quiser e como puder, demonstre interesse em participar daquilo que acontece ao seu redor e modifica o seu ambiente.

Ao menos em um primeiro momento, haverá dificuldades com alguns perfis de colaboradores. Como bem sabe quem já trabalhou em ambientes de trabalho mais horizontais, há por exemplo o falso interessado e o incompetente motivado. O incompetente motivado quer muito participar, se envolver, chamar para si, mas simplesmente não tem as condições necessárias àquele trabalho. Difícil dar esse feedback para alguém tão motivado. Com acesso irrestrito ao conhecimento e acúmulo de experiência em trabalho colaborativo, isso deve ter cura. Já o falso interessado não quer realmente contribuir ou participar, mas apenas fazer parecer, dizer que faz e acontece, motivado por ego inflado talvez. Em uma rede irrestrita onde as pessoas se movimentam livremente conforme seus interesses e são avaliadas por seus pares pela sua interação efetiva, isso perde o sentido.

O capital colaborativo - o conhecimento que o indivíduo acumula ao mesmo tempo em que compartilha - e a organização do trabalho em rede libertam as pessoas de trabalhos enfadonhos, indesejados ou inadequados. Cada um se vê livre para encontrar aquilo que gosta e sabe fazer, tornando-se capaz de desenvolver todo o seu potencial e contribuir de forma efetiva para a sociedade. Uma economia que se estrutura sobre esse tipo de trabalho há de ser muito mais produtiva e eficiente, consequentemente também sustentável. Mais do que isso, permite a distribuição da riqueza gerada, que tende a ser abundante. Se o principal fator de produção é abundante, tudo o mais tende a ser.

No âmbito político e social, o caminho da eficiência é um pouco mais complexo. Aqui, as pessoas devem colaborar não somente na consecução das atividades necessárias, mas também nos objetivos propostos, que afinal são coletivos. Decisões políticas afetam a toda uma comunidade e, para ter a colaboração de todos, precisam atender aos anseios de todos - ou ao menos não ferir os anseios de ninguém. Melhor do que a simples democracia - ditadura da maioria sobre a minoria - é a construção do consenso, algo que só é possível em um ambiente colaborativo, e também é o mais indicado. A partir de diferentes soluções possíveis a uma questão, se constrói uma nova, maior e melhor que as anteriores, e que resolve a questão para todos os envolvidos.

A colaboração em larga escala, para fins sociais, políticos e econômicos, advém da prática e da experiência. Hoje pode parecer utópico que grandes grupos de pessoas se entendam e atinjam alguma harmonia ou consenso para as mais diversas questões, mas a estranheza que a idéia causa em muitos deve-se à pouca prática de nossa sociedade no assunto. À medida que as pessoas sintam-se envolvidas nos processos sócio-econômicos e corresponsáveis pelas alterações em seu ambiente, buscarão desenvolver as habilidades básicas de colaboração, cocriação e construção de consenso - no fundo, naturais a um ser social, mas que desaprendemos ao longo da vida e acabamos tendo que reaprender.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Sociedade da Ineficiência

A questão da ineficiência - endêmica e proposital - é tema recorrente do meu cancioneiro, como nos artigos sobre a democracia representativa e sobre as cidades do século 21. É que sou repetitivo, chato mesmo. Mas acho realmente curioso como uma sociedade tão sofisticada desenvolveu um aspecto tão torpe. Convenhamos, é intrigante - a não ser que eu esteja inventando isso, mas acho que não.
Obsolescência programada: comprar, jogar fora, comprar mais.

Já é notório e bem estudado o fenômeno da obsolescência programada ou percebida, estado da arte do marketing de ineficiência. A programada é um genial recurso de design: produtos de qualquer gênero já são fabricados para não durarem. Quebram e não podem ser consertados, ou são superados por versões mais modernas e não podem ser reaproveitados. Como o nome diz, programada, é auto-explicativo. Poderíamos fabricar lâmpadas e baterias que duram décadas, computadores e eletrônicos que fazem upgrade com pequenos ajustes, peças de reposição baratas e reaproveitáveis para os mais diversos equipamentos, mas não o fazemos: precisamos vender sempre mais computadores, equipamentos, peças etc, e jogar tudo fora.

Já a obsolescência percebida é um genial recurso de propaganda: os consumidores são periodicamente convencidos de que estão desatualizados em relação à moda ou à última sensação do mundo da tecnologia ou da indústria automotiva. Assim, uma roupa, calçado, gadget ou até mesmo um automóvel são abandonados muito antes do fim de sua vida útil para dar lugar a outro mais novo e mais in.

Bem, produzir sempre as mesmas coisas para atender as mesmas necessidades, sempre renovadas, já seria ineficiente o bastante, mas o pior é o impacto indireto: consumo excessivo de matéria-prima por um lado e produção excessiva de lixo por outro. A reciclagem em larga escala trataria esse impacto, mas restaria ainda o desperdício de energia, espaço físico para armazenagem e custos de transporte.

A prática da obsolescência tem seus equivalentes também na ineficiência de serviços. Processos e fluxos de informação são desenhados para não resolver problemas - pelo menos não antes de muito custo. A tradicional burocracia das grandes repartições públicas e privadas não tem qualquer necessidade técnica de continuar existindo, mas sobrevive não apenas pela tradição, mas principalmente por um interesse em cultivar aqueles problemas que legitimam a existência da repartição. Percebe-se facilmente que não há grandes intenções de solucionar o que quer que seja da melhor forma possível, mas sim de estender os processos ao máximo possível, envolvendo toda uma série de estruturas e pessoas ao longo do caminho.
"Vamos estar resolvendo seu problema... not!"

A ineficiência em serviços não apenas gera empregos. Cria oportunidades. Envolve o consumidor em uma teia de necessidades que ele não deveria ter, e o obriga a consumir novos serviços que ele não deveria precisar. É como entrar em uma loja de celulares para reclamar do péssimo serviço e sair de lá com um aparelho novo e um novo e maior contrato, que logo em seguida começa a dar novos e maiores problemas. Uma fidelização maligna.

A sociedade, de um modo geral, tem dificuldade em perceber o quanto isso é intencional, pois nossos hábitos protegem a ineficiência. A maioria das classes sociais e categorias profissionais aceitam, praticam e cultivam hábitos essencialmente inúteis à evolução humana: convenções, que excluem ou desencorajam novas formas de pensamento ou prática, além de fechar espaço ao questionamento crítico; formalismos, que podam a criatividade humana e tiram a flexibilidade dos processos de trabalho ou de comunicação; e aparências, que são um grande sistema de adesão à falsa crença de que tudo está bem, ou de que ao menos cada um faz o seu melhor para que esteja, e que os métodos empregados são os melhores possíveis. Dessa forma, profissões inteiras se ocupam em usar palavreados difíceis, vestir trajes distintos, defender normas vazias que apenas servem a sua autopreservação e praticar procedimentos quase ritualísticos que supervalorizam seu trabalho e nada agregam a quaisquer serviços. E só. E pode-se ter certeza que todo esse faz-de-conta custa caro à sociedade duas vezes: pela manutenção das estruturas corporativistas e pela energia gasta em procedimentos e atividades que não agregam qualquer valor.

As categorias profissionais até mostram-se arraigadas a tradições, valores, coisas bonitas, mas a verdade é que todas, enquanto classes, buscam restrições de mercado para si, para sua maior pujança no caso das bem sucedidas ou para sua sobrevivência no caso das mais ultrapassadas. E, claro, restrição de mercado também é um fator de ineficiência. Alivia a consciência pensar que a restrição protege a sociedade, qualifica os serviços, promove o melhor conhecimento. A verdade é que diminui a concorrência e a diversidade, restringe o conhecimento e atrasa seu desenvolvimento e distancia a sociedade da apropriação dos serviços e conhecimentos que lhe são necessários. Interessante para quem vende esses serviços, mas para a sociedade não é.

Toda intermediação de informação ou serviço gera alguma forma de ineficiência por definição. Na melhor hipótese, consome tempo, e na pior inviabiliza o serviço. Em vez de apropriar-se do conhecimento e evoluir, a sociedade permanece refém de um corporativismo ou de convenções classistas que sempre restringem a oferta do serviço - pois se um serviço for oferecido de forma geral e irrestrita, não fará sentido qualquer forma de corporativismo. O melhor - na verdade, pior - exemplo dos efeitos negativos da intermediação instituída é o próprio sistema político representativo, já comentado no artigo anterior sobre política contemporânea.

A mesma máquina de mídia que promove a obsolescência percebida também promove o papel das instituições, classes e convenções, e divulga séries de ações sociais das mais inspiradoras, muitas vezes até filantrópicas, mas essas entidades ou tratam de problemas que elas mesmas criam com sua existência ou tratam de questões outras que não lhes competem, não justificam sua existência e poderiam ser muito melhor tratadas por outras pessoas, se houvesse espaço. A mídia tradicional (aquela que se ocupa com promoção institucional ou comercial, e não com informação) associa-se a corporações comerciais, governamentais ou classistas para perpetuar esse modelo de funcionamento dos meios de produção e serviços que, em síntese, determina como objetivo social a manutenção dessas corporações, e não o atendimento e resolução das necessidades da sociedade.

Por fim, se estabelece uma relação definitiva entre ineficiência e o modelo corporativista, pois se uma instituição de qualquer sorte existe para tratar de um problema, ela será eficiente se eliminar esse problema ou reduzi-lo à insignificância, o que a torna automaticamente dispensável. Ou seja, uma instituição eficiente elimina a si mesma, o que é o objetivo oposto de quase todas as corporações já instituídas na sociedade. A ineficiência é totalmente presente em nossas vidas hoje, e é desejada e necessária pelos sistemas atuais. Mas algum horizonte de mudança desse quadro talvez possa ser apreciado no artigo sobre a Terceira Revolução Industrial. Ou, pelo menos, espero que sim. Mas, senão, ainda escreverei mais sobre isso - pois este artigo já está grande, o que não é nada eficiente.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Política Contemporânea - O Fracasso da Democracia Representativa

Já comentei algumas idéias a respeito da necessidade da autonomia política local na vida das pessoas e da incapacidade dos grandes governos em responder aos grandes problemas atuais. Já comentei algumas vezes também sobre a ineficiência consciente e inerente aos sistemas atualmente em funcionamento no mundo. Bom, comentei sobre um monte de outras coisas, vai saber se alguém leu...
"Eu juro em nome do lobby..."


Eu sei, criticar a classe política hoje em dia parece meio como chutar quem já está caído - com a diferença de que, nesse caso, não está realmente caído. O problema é que a grande maioria das pessoas acredita que há furos no sistema - corrupção, superfaturamento, incompetência técnica e administrativa, favorecimentos, abusos de poder -, apenas falhas indesejáveis que devem ser sanadas. O que algumas pessoas já começaram, bem aos pouquinhos, a entender, é que o sistema foi feito para ser assim. Na verdade, enquanto as pessoas gritam contra a corrupção, por exemplo, o sistema é realimentado, com discursos de mudanças, novos controles, novas regras, vendendo uma idéia de que as pessoas estão sendo ouvidas e de que algo será resolvido. Bem, se tudo aquilo que origina os furos do sistema permanece tal e qual, tudo o mais é paliativo.

Quanto mais a autoridade pública é concentrada em grandes centros de poder, mais distante ela fica de sua respectiva sociedade, porém mais próxima dos lobistas e das grandes corporações. O representante político, por definição, está dentro da máquina do Estado mas longe do cidadão. De fato, permanece até protegido contra o tal cidadão! E se cidadãos comuns têm dificuldade em penetrar a máquina atrás de seus representantes, lobistas têm facilidade, prática e habilidade. O envolvimento direto entre representantes políticos e representantes dos grandes interesses privados não só é inevitável como é esperado. Dessa forma, a democracia representativa só seria capaz de atender aos anseios sociais se estes coincidirem com os grandes interesses privados. Talvez isso tenha sido verdade em algum tempo no passado, mas com certeza não é hoje.

Ainda que o fosse, essa noção de uma democracia organizada a partir de corporações - sindicatos, grupos empresariais, entidades de classe, igrejas, canais de tv -, cada uma fazendo valer o peso de seus interesses conforme o peso de sua própria presença na sociedade, a ineficiência do modelo é evidente. No momento em que se estabelece a relação política a partir de uma corporação, passa a existir o interesse dessa própria entidade, geralmente o interesse de seguir existindo, independente do interesse original que motivou sua existência e atuação política. O melhor benefício social possível para uma entidade de representação política seria alcançar definitivamente os interesses ou solucionar definitivamente os problemas que motivaram seu surgimento, eliminando assim a necessidade de sua própria existência. Sem chance.

Sendo, portanto, o interesse primário de uma entidade representativa a manutenção de sua própria existência, sua atuação se dará essencialmente em cultivar os problemas ao longo do tempo ou em estabelecer reservas de mercado para suas atividades, impondo uma relação de dependência à sociedade. Isso não é assim tão ruim. Fica ruim quando lembramos que, na democracia representativa, sempre haverá a estrutura político-partidária, ou seja, considere-se tudo o que foi dito acima em dobro. São duas camadas de ineficiência interagindo entre si pelos seus próprios interesses, tornando-se no fim um sistema praticamente fechado que só enxerga os anseios sociais quando estes precisam ser minimamente controlados. Agora sim parece ruim.

Essa realidade acaba tornando-se evidente em face da complexidade das demandas sociais atuais - devida a um elevado grau de informação de boa parte da população, algo inédito na história do mundo - e da relativa facilidade em atendê-las - graças aos avanços tecnológicos disponíveis. O político profissional é simplesmente incapaz de tratar questões técnicas, mesmo as simples. Ainda que ele perceba que deve dar uma melhor resposta ao público, antes que alguém toque fogo em alguma coisa, não consegue fazê-lo, porque não dispõe da capacidade técnica. E os técnicos capazes de resolver as coisas são abundantes hoje em dia, mas estão distantes do cenário político-partidário, e o jogo político os impede de pôr as mãos na massa. O Estado, controlado por políticos profissionais, é extremamente caro e absurdamente ineficiente, mas pretende continuar assim segundo o interesse das corporações que o controlam ou vivem dele.

Se faltava ainda alguma coisa para que as pessoas percebessem isso, veio finalmente a crise financeira que ainda se arrasta pelo mundo, e tornou mais evidente do que nunca que os partidos políticos e entidades de representação não têm soluções, não são capazes de alterar a lógica de procedimentos que já deram errado no passado e, principalmente, não são capazes de sacrificar seu próprio interesse em prol dos interesses sociais. Claro que não são, mas e aí? Qual é mesmo o ponto de tudo isso?

O fracasso do sistema político representativo não está em sua incapacidade de responder à população ou de combater seus próprios males, mas sim no fato de que não será mais capaz, daqui pra frente, de convencer as pessoas de que ele é necessário, ou o melhor modelo possível, que só precisa corrigir algumas falhas... Não, se quisermos resultados diferentes, precisamos fazer diferente. É certa perda de tempo pensar em grandes mudanças na economia e na sociedade sem pensar em um novo modelo de democracia - que alguns já chamam real ou verdadeira, considerando que a atual não é o poder do povo, mas sim de representantes indiretos - que efetivamente submeta o Estado aos anseios e aspirações sociais.
 
Algumas tendências já observáveis hoje em dia tornam mais fácil acreditar na viabilidade dessa nova democracia, como a prática do "do it yourself" (faça você mesmo), quando indivíduos assumem tarefas tradicionalmente delegadas ao Estado; o uso de redes sociais para discussão de políticas, projetos governamentais e até constituições; a formação de redes de comunidades autogeridas, que combinam a autonomia local com a integração global; e, finalmente, a adoção de novas tecnologias que tornam acessíveis serviços que até agora exigiam grande estrutura e capital, como energia, saneamento, educação e saúde.
A forma que terá esse novo Estado da democracia real é algo ainda em aberto. O certo é que o Estado corporativista da democracia representativa lutará por sua própria sobrevivência, e com todas as forças das instituições que morrerão com ele.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Aldeia Contemporânea - As Cidades do Século 21

A Revolução Tecnológica, Econômica e Cultural - ainda pretendo escrever sobre ela - já em curso está determinando os moldes de uma nova sociedade, uma nova forma de relacionar-se com o mundo e o meio ambiente. O que há de determinar também um novo tipo de habitat humano para abrigar essa sociedade. Parece certo que as pessoas viverão quase todas em cidades - mais do que hoje -, mas não são as cidades atuais do mundo o habitat adequado à sociedade do século 21.
A palavra-chave é sustentabilidade, conceito já gasto embora pouco praticado, mas o que vem a ser isso?
O primeiro passo é a autonomia política. Cada comunidade deve ser capaz de tratar seus próprios problemas de sua própria maneira, segundo seus próprios valores e suas próprias condições ambientais.


(Para entender melhor minha idéia sobre o papel das cidades, recomendo o artigo anterior. Para os que já são leitores do blog ou não se importam tanto assim com minhas idéias, segue daí!)



Antes de tudo o mais, diga-se que a autonomia local não tem qualquer conflito com a integração global. Na verdade, é quase um pré-requisito para que essa globalização seja minimamente harmônica e respeitosa da diversidade e dos interesses sociais. Não há qualquer dualidade entre o local e o global, mas sim a coexistência complementar e independente. E será essa independência que permitirá às cidades desenvolver as mudanças tão necessárias no futuro próximo.

Uma das primeiras e mais visíveis mudanças das cidades do século 21 será a mobilidade urbana, que está diretamente ligada ao convívio social. Ao longo do século passado, as grandes cidades correram na direção do individualismo: primeiro com o deslocamento preferencialmente por automóveis – e preferencialmente cada um no seu; depois com a própria eliminação da necessidade de deslocamento, trazendo a vida social para dentro de casa, do condomínio fechado ou para a tela do computador – o que alguém batizou nos anos 90 de vida no casulo.
Atualmente, vê-se uma tendência em reocupar os espaços, restabelecer o convívio humano direto, atravessar os muros dos condomínios e ganhar as ruas. Hoje, prefere-se eliminar o deslocamento burocrático – trabalho, acesso a serviços, obrigações civis – mas preservar a mobilidade voltada a atividades culturais e de lazer. Ao automóvel, meio de transporte individual por excelência, sobrevirão os transportes de massa, de preferência os mais eficientes como o metrô ou o VLT, combinados a meios complementares como a bicicleta ou as próprias pernas.
Não se trata apenas de coletivizar o espaço, mas principalmente de viabilizar a mobilidade de muitas pessoas para muitos espaços, sem ocupar esses espaços com automóveis (mero meio de transporte) e sim com pessoas (sua própria finalidade).
De fato, o automóvel sobrevive hoje no meio urbano, roubando a atenção que seria devida a meios de transporte mais eficientes, por uma necessidade de mercado, de consumo. E é essa mesma necessidade que financia a propaganda para convencer as pessoas da necessidade e da máxima realização de ser ter um carro – apesar da chocante ineficiência do carro como aquilo que, em essência, ele é: não um instrumento de realização ou de status, mas um meio de transporte urbano.

Aliás, a questão da eficiência não diz respeito apenas à mobilidade urbana. Eficiência em serviços será outra característica marcante das cidades do século 21. Uma cidade, em sua complexidade de atividades, requer uma série de serviços em constante funcionamento. Hoje, mais uma vez por uma necessidade de mercado, esses serviços são pautados pela ineficiência. No nível em que ocorre, só pode ser proposital e planejada. Imagino que gere emprego e oportunidades de negócio. Basta ver qualquer área de suporte a clientes de uma grande companhia. Bem, isso não é mais aceitável, se é que já foi algum dia.
Assim como no transporte, energia, água e comunicações requerem soluções de eficiência, ainda que isso elimine empregos e negócios – na verdade, é até melhor que não sejam negócios. A cidade do século 21 será auto-suficiente em energia limpa, terá acesso gratuito e irrestrito às redes de telecomunicação e oferecerá transporte gratuito e de qualidade. Conjugo no futuro, mas todos esses exemplos já existem. Quem não acreditar em mim pode perguntar pro google. Não tenho dúvida de que também se chegará a um sistema de auto-suficiência em tratamento de água, talvez nos moldes dos jardins filtrantes, já em desenvolvimento na Europa.

Cidades tão eficientes e auto-suficientes não poderão depender nem da autoridade pública – que não consegue ser altamente eficiente – nem da iniciativa privada – que não quer ser altamente eficiente. Compete às comunidades do século 21 assumir a autoridade local e, ao mesmo tempo, determinar e executar as providências necessárias a seu meio urbano. Já está em fase de disseminação a prática intitulada “do it yourself” (faça você mesmo, ou simplesmente DIY na abreviação em inglês). Significa exatamente o que diz: se você quer, faça. É auto-explicativo.
Um típico governo local é capaz de levar anos estudando e elaborando projetos para demarcar uma simples ciclofaixa em uma avenida. Um grupo de pessoas com um pouco de motivação, tinta e, de preferência, algum discernimento o fará em uma noite. Existem exemplos concretos de DIY, inclusive no Brasil, em limpeza de praças, manutenção de parques, restauração de patrimônio histórico e realização de eventos culturais em espaço público. Não há qualquer impedimento técnico para que se faça o mesmo com equipes de saúde da família, escolas comunitárias ou até sistemas de engenharia de tráfego.
Claro que há um risco de conflito de interesses. Uma minoria é capaz de executar uma intervenção por conta própria se não quiser respeitar a vontade da maioria, e qualquer intervenção que seja desfeita e refeita conforme grupos distintos entrem em disputa significa uma grave perda de eficiência na vida da cidade. Mas, desde que haja o convívio social irrestrito, o bom uso das ferramentas sociais e o respeito a um certo grau de autonomia para cada bairro ou vizinhança, a tendência natural é de que cada comunidade desenvolva rapidamente técnicas de debate e de construção de consenso.

Considerando-se a realidade aqui proposta, de cidades com acesso praticamente irrestrito a todos os serviços essenciais e comunidades com alto grau de autonomia para intervir em seu próprio meio físico, uma das conseqüências mais significativas será a inclusão social das populações marginalizadas, o que por si só reduz drasticamente grandes problemas urbanos atuais, como a violência, o subemprego e os bolsões de miséria.

Talvez muitas cidades no mundo passem todo o século 21 tentando em vão tornarem-se cidades do século 21, mas não há um caminho correto pré-definido, cada uma poderá encontrar um caminho diferente e igualmente bom. O certo é que isso dependerá principalmente da capacidade de cada comunidade em assumir e construir seu próprio destino.

Sugestões de tags para o google: “jardins filtrantes”, “do it yourself”, transporte+VLT, “energia limpa”, “cidades auto-suficientes”.