Moro em Porto Alegre, uma cidadezinha no remoto sul do Brasil. Apesar
 de pequenina e provinciana, Porto Alegre tem a infelicidade de suportar
 sobre sua superfície 1,5 milhão de criaturinhas humanas, sendo que toda
 a área metropolitana apresenta aproximadamente o dobro desse singelo 
número. Aproximadamente mesmo, quase se esbarrando um no outro. É 
bastante gente se mexendo e fazendo barulho para todo lado. Uma 
verdadeira maravilha do Brasil moderno.
Em minha cidade, não reclamamos muito de falta de metrô, tramway, 
Brt... Afinal, somos brasileiros, e isso é tudo coisa de europeu fresco.
 Para nós, transporte público é coisa de pobre, é o bumba, chacoalhando o
 povo por duas horas entre o centro e o bairro. Agora, experimenta botar
 semáforo na rua para ver se não viramos feras dentro de nossos carros. E
 nem adianta, pois nossa cidadezinha não paga imposto para botar 
semáforo - aqui chamamos de sinaleira, que é mais pitoresco. Tem 
sinaleira embaixo de viaduto, em volta de rotatória, a cada dez metros 
em vias expressas, enfim, nossa criatividade permite colocarmos 
sinaleira em quase qualquer lugar. E nosso gênio ruim faz com que 
amaldiçoemos as mães de todos aqueles que as colocaram.
Pois bem. Atualmente, uma mega ação de intervenção 
urbana da prefeitura espalha semáforos em torno das principais 
rotatórias da cidade. Antes de mais nada, registre-se minha opinião 
técnica e bem balizada sobre o assunto: rotatórias com semáforos em 
volta parecem um forte sinal de que algo vai meio mal na engenharia de 
tráfego. Tipo, tecnicamente falando, uma verdadeira bicheira de 
engenharia de tráfego. Mas, sabe o pior? Era necessário.
Nessa pacata cidade, vale a lei do mais forte. Aqui, entenda-se que a
 massa de um carro multiplicada por sua velocidade lhe confere energia 
cinética. Quem detém a maior energia cinética tem a preferência em uma 
rotatória. E pode ser bem difícil decidir isso no calor do momento, cada
 um correndo para chegar mais rápido ao próximo congestionamento. Nossas
 rotatórias são um desafio à boa convivência de nossos calmos e bem 
equilibrados motoristas. E pior ainda para os pedestres e ciclistas - 
sim, pois, pasmem os habitantes de outras realidades, essas calamidades 
do trânsito costumam ficar em áreas de grande circulação de pedestres. 
Atravessar uma rotatória é arriscar a vida, já que pedestres e ciclistas
 têm uma energia cinética que nem merece respeito.
Foi necessário, e bem feito. Bem feito para os muitos motoristas que
 abusam de sua energia cinética nesses locais, e não demonstram quase 
nenhum respeito pela pele dos mais indefesos. Aproveitem a parada em 
frente aos semáforos para refletir sobre a vida.
Essa singela parábola do motorista portoalegrense, que desrespeita o
 pedestre e depois esmurra o volante quando tem que parar em um 
semáforo, representa bem a problemática de muitas das questões urbanas 
modernas: ação e reação, yin e yang, o que vai volta, e o que você faz é
 o que você recebe. Jogue lixo nos bueiros e sofra com os alagamentos; 
desrespeite as regras de convivência no trânsito e sofra com o trânsito 
precário; apóie o fechamento de bares e atrações de lazer em nome de seu
 sossego, depois sofra com a falta de opções de lazer na cidade.
Uma cidade é mesmo recheada de criaturinhas humanas dos mais 
diversos naipes e gênios - quase todos ruins. Aliás, não o fosse, não 
mereceria o nome de cidade. No máximo, vilarejo. Na verdade, essa 
diversidade é o que gera riqueza cultural e desenvolvimento humano a uma
 cidade - diferentes idéias, visões de mundo, experiências de vida, tudo
 convivendo junto em um único espaço e tal... Mas se houver a tal 
convivência. Na sociedade de consumo, aprendemos a valorizar nosso 
espaço, nossa casa, nosso carro, nosso ar, nosso silêncio... Mas em uma 
cidade grande os espaços não são tão individualizados assim. Nem tem 
como ser. Milhões de criaturinhas inquietas e barulhentas? Mude-se para o
 campo ou para a praia - uma das bem pequenas.
E pela própria lei de ação e reação, quanto mais se tenta fechar o 
espaço de uma tribo urbana, geralmente daquelas mais chatas e 
barulhentas, mais ela reage incomodando e fazendo barulho. Quanto mais 
os carros tomam espaço da cidade, mais os demais grupos tendem a invadir
 esse espaço. E quanto maior o confronto entre diferentes grupos de 
interesses, maior a regulação e restrição para todos.
Uma cidade grande deveria ser capaz de acomodar a todos os grupos se
 preservado o interesse comum. Uma boa rede de transporte público 
atendendo à grande maioria libera espaço suficiente para todos os 
demais, sejam motoristas, pedestres ou ciclistas. Uma boa quantidade de 
espaços de convívio e lazer permite opções a todas as tribos, sem 
disputa por espaço ou invasão das áreas de sossego. E assim vai, essa é a
 idéia. Mas tudo isso demanda que se pense no bem comum antes do 
particular. Yin e yang, o que vai volta. Aquilo que você faz é o que 
você recebe.
A engenharia de tráfego moderna é um ótimo exemplo do quanto é 
inviável tratar nossa falta de capacidade de convivência na marra. 
Enquanto cada um se preocupa com seu próprio espaço, tape-se a cidade 
com semáforos, viadutos, quebra-molas, barreiras, e assim fica ruim para
 todo mundo e não fica bom para ninguém. Não deixa de ser democrático. 
Claro que seria melhor enfrentar nosso gênio ruim e desenvolver o 
respeito mútuo e a prática da coexistência. Mas somos mesmo 
criaturinhas muito barulhentas.

 
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