A contribuição da cigarra também conta, pois leva alegria à voluntarioso formiga. |
Um erro grave, mas comum, que se comete quando o valor do trabalho é relativizado - sempre referindo-se ao conceito mais "tradicional" de trabalho - é acreditar que todos, se não trabalhassem, se tornariam uns inúteis, ou começariam a causar problemas. Afinal, mente vazia é playground do diabo, certo? Isso pode ser um tanto verdade hoje por causa da cultura atual, mas não é próprio da natureza humana. Talvez o próprio desajuste que muitos demonstrem quando em ócio seja devido à sensação inevitável de párias, de menos-que-cidadãos, fruto da cultura vigente. E a maior prova de que esse tipo de juízo é pura convenção é a diferença entre as classes de desocupados. Um rico que não trabalha é admirado e invejado como alguém que sabe viver a vida, mesmo que haja pouco mérito em sua fortuna - exemplos há de sobra. Já um "pobre" que não trabalha, pois vive bem com o pouco que tem (e, por esse aspecto, pode também ser considerado rico), é visto como um parasita social.
A verdade é que as mais significativas contribuições da sociedade costumam ser fruto do ócio. Claro que muitas invenções científicas e avanços tecnológicos devem-se à busca de seus autores por sucesso ou fortuna, mas as mais significativas dentre essas só poderiam ocorrer com uma boa dose de ócio. É aí que aflora a criatividade humana, jamais no stress e nas obrigações do trabalho cotidiano. E a criação que surge da vocação natural é sempre mais inspirada que aquela que surge da necessidade. Basta comparar a música de um verdadeiro artista e a música do artista comercial, feita sob medida para vender.
Outra verdade é que todo ser humano tem alguma vocação natural ou interesse genuíno. Não é necessário que seja algo tão essencial para o resto do mundo. O mundo tem bilhões de pessoas, a contribuição individual de cada um não precisa ser grande, o importante é que seja boa - ou seja, feita com boa vontade, talento e desapego. E somadas tantas diferentes contribuições, há de se encontrar de tudo. Desde que o ócio não seja visto como um raro momento de fuga de uma rotina enfadonha - como é hoje para a grande maioria -, o natural é que as pessoas queiram utilizá-lo para aquelas atividades que elas gostariam mas que normalmente não encontram tempo de fazer.
Sempre vi como verdadeiros heróis aquelas pessoas que, mesmo sujeitas a uma rotina de trabalho diária, encontram disposição em seu tempo livre para dedicar-se voluntariamente a atividades mais altruístas, em prol de um mundo melhor ou de uma sociedade mais justa, cada uma a sua maneira e conforme suas forças. Mas quantas outras pessoas sentem vontade de fazer algo assim, e certamente têm alguma habilidade a oferecer, e não encontram energia no pouco tempo livre que lhes resta? Quantas pessoas se dedicariam a idosos, crianças, pessoas com necessidades especiais, ou ainda ao meio ambiente, espaços públicos, atividades culturais, sempre voluntariamente, sem nenhum tipo de recompensa direta, e se sentiriam realizadas com isso? Aliás, quantas pessoas se sentem realizadas hoje com seus trabalhos?
É sempre uma possibilidade que alguns realmente queiram levar toda uma vida de puro ócio, talvez por falta de vocação, talvez por nunca ter despertado seus interesses. A esses, resta a questão do bom convívio social. Se, de alguma forma, representarem efetivamente um fardo para suas comunidades, serão cobrados por isso e se sentirão pressionados a ter uma atitude mais colaborativa. Mas, se estiverem em harmonia com a coletividade, que mal há? E se há bom convívio social, significa que ao menos nas pequenas ações e atitudes do dia a dia há alguma contribuição. O valor da contribuição de cada indivíduo para a coletividade só pode ser medido pela própria coletividade, e isso acontece naturalmente e segundo as características de cada sociedade.
Existe ainda aquela contribuição social intangível, impossível de ser medida, mas que deveria ser altamente valorizada em uma sociedade moderna, que é a contribuição para o nível geral de felicidade e bem estar. Isso pode ser feito através da arte, entretenimento, diversão, atividades culturais, esportivas, enfim, tudo aquilo que possa ser apreciado individualmente e compartilhado coletivamente.
Pense em tudo que você pode fazer hoje sem sair da cama. |
Ou seja, se é verdade que estamos alcançando as condições técnicas para gerar abundância - e acredito que estamos -, deveríamos também já estar buscando essa sociedade mais feliz, solidária, produtiva e criativa. Longe de ser utopia ou devaneio, é uma conclusão lógica quando consideramos a realidade atual despidos de preconceitos, ou de valores éticos que já sobreviveram a seu próprio tempo e não fazem mais sentido prático algum.
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